16 maio 2014

De olhos abertos



Ele nunca se lembrava dela. Só foi perceber isso em seu leito de morte, quando olhou nos olhos de sua filha com a outra mulher e a viu por completo. Os olhos castanhos e meio marejados que ela carregava para cima e para baixo na juventude nunca lhe disseram nada, mas agora que estava enfim próximo do fim, pareciam ter outro significado. Por alguns minutos ficou só olhando-os, enquanto a menina que vira crescer falava milhares de coisas sobre como ele aparentava estar bem e sobre o maldito prato de sopa que ele comera naquela tarde. Ele sabia que estava morrendo e por isso não deu atenção àquelas baboseiras. Por isso e por causa dos olhos dela que não saiam de sua cabeça. Pensou como seria se tivesse escutado as palavras dela naquela época e como ela estaria agora. Se ainda mantinha o mesmo peso, o mesmo cabelo sempre desgrenhado e a cara de cigana dos nossos tempos com a maquiagem meio borrada e vulgar. Tinha certeza que os olhos estariam os mesmos. Ou pelo menos era o que esperava. Fechou seus olhos e foi tomado pela escuridão de suas pálpebras. Não fazia bem, nem àquela altura da vida, sonhar com olhos de olhos abertos.

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