13 março 2011

Caio

Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
(...)



Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.

(...)

Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.

Caio Fernando Abreu

9 comentários:

  1. Nem preciso dizer que CFA é muito foda (com o perdão da palavra), né??
    Mas juro, juro que eu passei a história inteira achando que os dois iam se pegar no hora do almoço.... hahahahahahahahahahahha

    Um Beijo, Antonio... até o próximo

    ResponderExcluir
  2. uiaaaa...
    sempre há um ponto de partida!

    abraços do voy

    ResponderExcluir
  3. Tudo tem que começar de algum lugar, não é?

    Beijo Antônio!

    ResponderExcluir
  4. Adoro esses textos em que tudo é entendido, mas sem que nada seja dito! ;-)

    ResponderExcluir
  5. E nem precisava dizer mais nada, né?! O "extra-campo" diz tudo!

    bj bj

    ResponderExcluir
  6. bacana esse conto dele.
    bjo querido!
    boa semana!

    ResponderExcluir
  7. Olá, naõ me canso de dizer para mim mesmo, CFA é o maior escritor do mundo pra mim, este conto, como todos dele é especial, especialmente aquele final, para os hipócritas, nunca mais seriam felizes. É uma bela história de amizade e amor.
    ps. Um grande abraço.

    ResponderExcluir